Política de Arestas

 Arquitetura de Arestas é um livro sobre política. O acaso quis que eu folheasse a publicação dias depois da visita ao ateliê de Fabiañá Préti, em que conversamos, entre outros aspectos de sua produção, sobre o posicionamento político implícito na escolha da pintura abstrata como linguagem estética. Por se tratar de uma abstração que flerta com a geometria, recusando deliberadamente alguns de seus preceitos, saí do ateliê pensando que a pesquisa da artista constitui uma Pintura de Arestas. Com esses dois conjuntos de arestas em mente, passei a conjecturar se seria possível fazer uma intersecção entre eles, ou mesmo se não seria o caso de radicalizar para uma operação de diferença ou união. Recusar, deliberar, conjecturar, radicalizar. A política é uma lista de verbos. Nomear é uma ação política. Decido chamar este texto de Política de Arestas.

O vocabulário empenhado em Arquitetura de Arestas, apesar de a obra dos jovens intelectuais Edemilson Paraná e Gabriel Tupinambá ter como foco “as esquerdas em tempos de periferização do mundo”, se avizinha do léxico de formas mobilizado por Fabiañá Préti em sua série recente de pinturas de grande formato.  Quando os autores flagram nas esquerdas brasileiras um crítica antissistêmica com senso de proporção distorcido, que acaba sacrificando a complexidade do real, penso no uso crítico pela artista de certa distorção de proporções para abarcar a diversidade complexa da realidade.

 Assim como, ao diagnosticarem o desafio da plasticidade flexível que as novas formas de acumulação e exploração do capital assumem no mundo de hoje, me vem à mente o sistema de grid do qual a artista não abre mão, desde os seus trabalhos de 2016, ano em que toma a decisão de ser artista em tempo integral. A modulação de pequenas formas geométricas, organizadas seguindo um ritmo e uma estrutura invisível (Préti não utiliza fita crepe no processo de construção das pinturas: cada linha reta ali, e são muitas, é fruto de uma articulação olho-mão que deixaria qualquer arquiteto abismado), cria um campo gravitacional que opõe resistência à maleabilidade plástica das formas maiores e mais espessas, aplicadas com o uso de máscaras recortadas por ela (à mão, logicamente).

Cada uma das cinco telas feitas para a presente exposição é um campo de forças instalado diante do espectador, a ser perscrutado a meia e longa distância. O movimento do corpo possibilita enxergar, de longe, um todo harmônico, organizado, onde está em jogo uma espécie de ruptura sistêmica. Já de perto, o campo de batalha revela aos olhos os fragmentos imperfeitos, a desorganização calculada, as arestas que configuram uma ruptura acentuada. Quanto mais próximo o corpo fica da tela, mais radical nos parece a operação de Fabiañá Préti, porém, ao se encontrar colado à superfície de juta parcialmente recoberta de tinta a óleo, perde-se qualquer noção do todo.

A oscilação irresolvível, porque fadada a se repetir infinitamente, não é diferente do paradoxo apontado por Paraná e Tupinambá sobre as tentativas de civilizar o capital, que resultam inevitavelmente em ser por ele colonizado. A “análise concreta da realidade concreta”, em política, desemboca nas aporias da forma partido. Aqui, uma análise concreta da materialidade concreta desses objetos de arte que ganham vulto político, quando entendidos como discurso-representação de mundo, resulta na incerteza acerca do partido da forma defendido pela artista.

Ser artista é tomar partido. Escolher a linguagem abstrata é uma atitude política. Qual o partido das formas que oscilam entre a racionalidade ortogonal e a gestualidade barroca nas obras de Préti? Os dois conjuntos de repertório pictórico estão sendo operados por ela como intersecção, diferença ou união? E, mais importante ainda: é necessário resolver essa equação? Retomo o léxico da Arquitetura de Arestas: na efemeridade dos movimentos transitórios, na desconfiança da razão, a esquerda se insurge contra a fixidez das estruturas e a subsunção da parte pela totalidade, buscando novas bases para pensar o problema da liberdade.

Diante do léxico da Pintura de Arestas, vejo uma artista que se insurge contra uma horizontalidade e uma autonomia esvaziadas de conteúdo material para buscar a irrupção de uma outra forma de liberdade. Na sua Política de Arestas, a valorização da experiência, materializada na sobreposição de camadas que camufla apenas em parte a história da construção sobre a superfície de juta (inclusive deixando à mostra a própria juta); o exercício dos erros que desorganiza o grid modernista; o fluxo da criação que confere igualdade a todos os elementos (tanto os materiais quanto os filosóficos) de maneira generosa e afetiva; a meditação artesanal que contém, em potência, uma vocação para a escala urbana e um desejo mesmo de intervenção no espaço público, embasado no imaginário escultórico que a artista traz na bagagem (pela formação em desenho industrial); tudo isso, enfim, me leva à conclusão provisória de que as esquerdas têm muito a aprender com as arestas.

 

Juliana Monachesi

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